Yuli Novak, B’Tselem: Israel deve responder por nosso genocídio. E o mesmo vale para os Estados Unidos

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The Guardian. Por Yuli Novak.

A comunidade internacional permitiu que tudo isso acontecesse. Não devemos desviar o olhar ou simplesmente seguir em frente. O genocídio é um processo, não um evento. Quando ele ocorre, suas raízes e as condições que o possibilitaram muitas vezes só se tornam visíveis depois. Se essas condições permanecem inalteradas e não há qualquer responsabilização, há todas as razões para acreditar que a violência retornará — talvez ainda pior — especialmente se ela nunca foi totalmente interrompida. É exatamente isso que estamos vendo no caso de Gaza. Responsabilizar os líderes israelenses não diz respeito apenas ao passado; é a única maneira de desafiar um sistema projetado para repetir essa violência.

Uma estranha forma de calma se instalou em Israel nas semanas seguintes ao anúncio do cessar-fogo em Gaza. As sirenes cessaram. Os reféns que sobreviveram ao ataque de 7 de outubro e a quase dois anos de cativeiro voltaram para casa. Mas essa calma, que não chegou a Gaza — onde mais de 200 civis foram mortos desde que o cessar-fogo deveria ter entrado em vigor —, está construída em torno de um plano pouco claro de Donald Trump que não enfrenta as causas profundas da violência e não passa de um miragem. Nada mudou no violento sistema político em que vivem israelenses e palestinos. A máquina por trás da violência permanece intacta. A lógica do domínio continua a dominar.

Durante quase dois anos, Israel conduziu em Gaza uma campanha que se encaixa na definição mais clara de genocídio: uma tentativa sistemática, muitas vezes abertamente declarada, de destruir um grupo de pessoas — os palestinos de Gaza — por meio de assassinatos, fome, deslocamentos forçados e destruição de suas condições de vida. Genocídio não é uma metáfora aqui. É o único termo apropriado.

A nossa organização, B’Tselem, publicou um relatório no último mês de julho intitulado “O Nosso Genocídio”. Escolhemos esse nome porque não somos observadores, mas parte dessa história horrível. Pesquisadores, investigadores e trabalhadores de campo palestinos e israelenses atuaram juntos para documentar os acontecimentos em Gaza, na Cisjordânia e em Israel. A nossa conclusão confirma o que palestinos e especialistas internacionais vêm afirmando há muito tempo: isto é genocídio — um ataque direto contra uma população com o objetivo de aniquilá-la.

Os palestinos de Gaza foram bombardeados, depois expulsos à força, e então deliberadamente deixados morrer de fome. Mais de 68 mil pessoas foram mortas, um terço delas mulheres e crianças. Esse número pode ser muito maior, com dezenas de milhares de pessoas ainda desaparecidas. Centenas de milhares foram feridas. Hospitais e jornalistas foram sistematicatente alvejados. Crianças enterradas vivas sob os escombros. Linhas familiares inteiras apagadas. Infraestruturas demolidas. Funcionários israelenses declararam abertamente o objetivo: destruir Gaza e torná-la inabitável. Por definição, isso é genocídio: mirar deliberadamente pessoas não pelo que são como indivíduos, mas porque pertencem a um grupo destinado à destruição.

A origem desse genocídio não começou em 7 de outubro de 2023, nem terminou com o acordo de cessar-fogo. Suas raízes estão fincadas em décadas de domínio militar israelense sobre os palestinos, apartheid, impunidade e desumanização, alimentados por um sistema construído para garantir a supremacia judaica sobre todo o território. Isso não significa que esse genocídio fosse inevitável. Cada genocídio depende de condições favoráveis e de eventos que o impulsionam.

O ataque de 7 de outubro foi horrível para todos os israelenses, inclusive para mim. Ele permitiu que o sistema israelense desse início a uma destruição coordenada e em larga escala da vida palestina em Gaza, sob a bandeira da autodefesa. Isso foi simplesmente a continuação de mais de meio século de ocupação militar, 15 anos de cerco e bloqueio, e repetidas campanhas militares contra Gaza que mataram milhares de palestinos.

A comunidade internacional, especialmente os Estados Unidos e outros governos ocidentais, permitiu que tudo isso acontecesse. É assim que o genocídio se apresenta no século XXI: não apenas na escala ou no método, mas no modo como ele é normalizado. Como governos e líderes — especialmente nos EUA e na Europa — testemunham a devastação sem dizer nada. Ou pior: apoiando-a e incentivando-a.

Mas, apesar da propaganda israelense, as pessoas nos Estados Unidos e em todo o mundo reconheceram o que está acontecendo. Um movimento crescente de cidadãos está se levantando — não apenas contra o genocídio, mas contra o sistema que o torna possível. Esse sistema deve ser nomeado: um regime de controle violento sobre milhões de pessoas rotuladas como inferiores. Um regime de apartheid, liderado por um governo israelense que abraça o racismo, autoriza milícias de colonos a aterrorizar comunidades na Cisjordânia, administra campos de tortura onde milhares de palestinos são mantidos sem julgamento e comete diariamente crimes de guerra.

É tentador, especialmente para os israelenses, acreditar que o pior já passou. Mas em Gaza o genocídio continua vivo nos membros amputados, nos traumas sem tratamento, na fome generalizada — Israel continua bloqueando a entrada de alimentos e outros auxílios humanitários — e na perda de gerações. O preço de normalizar esse genocídio não recairá apenas sobre os palestinos. Suas implicações globais são precisamente a razão pela qual, após a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional criou um arcabouço jurídico para impedir a repetição de atrocidades como o genocídio. Quando se permite que uma nação apague outra sem consequências, envia-se aos governos futuros a mensagem: vocês também podem fazer isso — e sair impunes.

Não devemos desviar o olhar. Não devemos virar a página. Quem deseja estar ao nosso lado — todos nós, o povo desta terra — deve agir para interromper este regime violento, racista e cada vez mais fascista e exigir que seus dirigentes respondam por suas ações. Esse é o único caminho para proteger as vidas tanto de palestinos quanto de israelenses.

A responsabilização é essencial — não por vingança, mas porque não existe acerto de contas sem responsabilidade. O genocídio não pode ser normalizado. E um sistema que o perpetra não pode passar despercebido.

Yuli Novak é diretora-executiva da organização israelense de direitos humanos B’Tselem.

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